Só podemos pisar as riscas brancas!

Só podemos pisar as riscas brancas!

Há uns dias atrás vinha do parque com a minha filha mais nova e, ao atravessarmos uma passadeira, olhou para mim com ar trocista e disse: “Pai, só podemos pisar as riscas brancas!”

Confesso que me senti deliciado e imediatamente transportado para a minha própria infância. Provavelmente toda a gente, em criança, fez a mesma brincadeira. É uma questão que sempre me intrigou, diferentes pessoas reagirem de forma idêntica ao mesmo estímulo. No meu caso, lembro-me distintamente que o prédio em que vivia em criança tinha, no pavimento do átrio de entrada, um padrão de quadrados de pedra brancos e pretos, aparentemente aleatório (pelo menos nunca consegui vislumbrar a sua regra). Todas as crianças do prédio, quando nele entravam, faziam a mesma brincadeira – neste caso era saltitar pelos quadrados pretos (que eram em muito menor número) até chegar ao elevador. Muitos anos mais tarde, já adulto, divertia-me sempre que via uma criança fazer o mesmo. Aparentemente, quando confrontados com um determinado estímulo visual, num certo espaço, as crianças não resistem a incorporá-lo nas suas brincadeiras.

Provavelmente os estudiosos da mente terão uma explicação perfeitamente lógica para isto. Já me transmitiram que esta faceta teria origem no nosso património genético, em informação gravada no cérebro reptiliano, ou outras explicações científicas. Eu prefiro pensar que é uma manifestação de criatividade e de inteligência na apropriação do espaço que nos rodeia, características da raça humana e que as crianças, sem filtros de boa educação ou comportamento, tão bem representam. Penso também que esta questão é potenciada pela repetição da experiência. É possível que nem todas as crianças se lembrem de apenas pisar as riscas brancas quando atravessam uma passadeira. Mas, mais tarde ou mais cedo, irão certamente fazê-lo.

Mas assim como acredito que há experiências sensoriais que são vividas da mesma maneira por toda a gente, acredito também que cada individuo tem, normalmente, uma percepção do espaço muito própria e particular, principalmente da primeira vez que o sente. Por isso é tão importante conhecer pessoalmente os locais, cidades e as obras de arquitectura mais emblemáticas, em vez de as conhecermos apenas por fotografias. Não estou a diminuir a importância da fotografia, antes pelo contrário. Acredito o mais possível no seu valor e capacidade de veicular conhecimento e induzir emoções. Mas penso que o conhecimento pessoal de um local é insubstituível. Para além de ser uma experiência muito mais completa, não se limitando à visão mas antes incorporando dados perceptivos provenientes dos outros sentidos, é sobretudo subjectiva e muito pessoal. Depende das nossas características físicas, antecedentes culturais, condições atmosféricas e até do nosso estado de espírito (como dizia Paul McCartney numa canção que até é bastante banal “What good is art when it hurts your head?”).

A arquitectura, para além do que vemos quando a percorremos, e nos apercebemos das luzes, sombras, cores, brilhos ou texturas, transmite-nos dados perfeitamente subjectivos e variáveis de pessoa para pessoa. O calor que sentimos ao andar num espaço, o modo como soam os nossos passos, o cheiro de um soalho, a aspereza de uma parede, um determinado ângulo ou encadeamento de vistas, luzes ou sombras, a forma como uma cor nos pode surpreender, são infinitos os pormenores que nos emocionam, positiva ou negativamente. E que contribuem para que a nossa experiência seja única e diferente até da pessoa que está do nosso lado. Um espaço com pé direito muito baixo pode suscitar grande conforto a uma criança e ser insuportável a um indivíduo de grande estatura. Um espaço que aparenta um luxo inexcedível para uma pessoa de poucos recursos poderá parecer banal a um milionário.

A verdade é que a nossa relação com o espaço que percorremos é acima de tudo uma questão de percepção pessoal.