“Que possas viver tempos interessantes”
Esta frase, tantas vezes repetida, é supostamente a tradução de uma antiga maldição chinesa (embora não haja, de acordo com a pesquisa que efectuei, registos efectivos de que assim seja). O seu significado é ambivalente. Se é aparentemente aliciante viver em tempos interessantes, é também previsível que o seja difícil, pelo menos por comparação com alturas pouco conturbadas. Os tempos interessantes para uns podem não o ser para todos. E normalmente não são.
Com a idade que tenho, que ainda não é muita mas também já não é pouca, no meio de milhares de dúvidas e interrogações que me preenchem a cabeça, e sem fazer grande futurologia, já sei várias coisas: Sei que não vou ganhar o prémio Pritzker1, que ainda tenho menos probabilidades de ganhar o Euromilhões e que não vou resolver os problemas do mundo nem mudá-lo completamente para melhor. Sei que quando tiver morrido (espero que daqui a muitos anos) o rasto da minha passagem pelo mundo irá desvanecer-se até que algum dia ninguém se lembre de mim, nem sequer os descendentes dos meus descendentes.
Mas sei também que, enquanto cá estou, posso influenciar e até mudar a vida de algumas pessoas, para além obviamente das que me são próximas. Está ao meu alcance inspirar e melhorar a vida das pessoas que usufruem daquilo que eu faço melhor – pensar e alterar o espaço em que vivem. É disso que vivo e é assim que gostaria de acabar os meus dias. Um arquitecto não se reforma. Por um lado porque, salvo raras excepções, não ganha suficientemente bem para isso, por outro porque é de facto aquilo que gosta de fazer e não se imagina a fazer outra coisa. E também porque é das profissões em que se ganha com a idade. Ganha-se experiência, consistência e maturidade. Pode perder-se frescura física, irreverência e deixar de se andar sempre na crista da onda, mas as nossas obras ganham profundidade e espessura e têm decerto menos erros. Em arquitectura, enquanto há lucidez, a idade é uma mais valia. Muita de produção arquitectónica mais aplaudida dos meus colegas mais famosos data de uma altura em que já tinham entrado na chamada maturidade. E há exemplos como Niemeyer que, aos 102 anos, continua a exercer a profissão.
Estamos provavelmente a viver a crise económica mais complicada que os que estão em idade activa alguma vez conheceram. Estudámos em história as grandes crises por que o país e o mundo passaram, mas não temos qualquer noção do que seja vivê-las na pele. Parecem-nos acontecimentos remotos, que sempre avaliámos por um prisma distanciado, pelo tempo ou pelo espaço.
A arquitectura, como muitas outras actividades, está a sofrer duramente com estes tempos. As encomendas diminuíram, os clientes estão retraídos, o crédito a que habitualmente recorrem complicou-se drasticamente, a compra de habitação quase estagnou, todos aguardamos decisões para avançar com projectos que já estavam aparentemente garantidos.
Acho que há algumas palavras chave que devemos ter em mente para sobreviver a estes tempos: Adaptabilidade, persistência, imaginação, determinação e esperança.
Adaptabilidade porque não podemos continuar a pensar como até aqui. Temos que procurar as oportunidades que existem e são necessariamente diferentes das que temos conhecido. Com as transformações que as novas tecnologias trouxeram à forma como vivemos, trabalhamos e comunicamos, muito do que nos ensinaram ou tínhamos como certo está obsoleto. Temos de nos adaptar à nova realidade, procurar o nosso espaço, encontrar o nosso público. Até porque está provado que em alturas de grande crise surgem sempre grandes oportunidades. É “só” encontrá-las.
Persistência porque o caminho não é fácil e não está isento de decepções. Não podemos é permitir que uma decepção pontual se transforme num fracasso permanente.
Imaginação na medida em que temos de procurar soluções diferentes, inspiradas, para contrariar a adversidade. No dia a dia ou nos projectos que realizamos, temos de conseguir fazer mais com menos.
Determinação porque para além de sermos persistentes temos também de traçar objectivos e lutar arduamente para conseguir a sua concretização. Fazer o possível e tentar o impossível para conseguir materializar os nossos sonhos. E estar preparados para trabalhar, trabalhar e trabalhar.
Esperança porque devemos ter consciência de que o que passamos é necessariamente transitório. Portugal tem quase 900 anos de existência e sobreviveu a crises, apesar de tudo, bastante piores. Ainda aqui estamos depois de tantos problemas. E porque se perdermos a esperança, a capacidade de sonhar, tudo se torna mais difícil, sombrio e penoso. E chato.
Porque, para o bem e para o mal, vivemos de facto tempos interessantes.
Nota 1: o prémio Pritzker é o galardão mais importante a que um arquitecto pode aspirar, muitas vezes denominado “o Nobel da arquitectura”. Já foi atribuído aos arquitectos portugueses Álvaro Siza Vieira (1992) e Eduardo Souto de Moura (2011)